quinta-feira, 19 de novembro de 2009

A estética de Caetano em "O Estrangeiro"


O pintor Paul Gauguin amou a luz na Baía de Guanabara
O compositor Cole Porter adorou as luzes na noite dela
A Baía de Guanabara
O antropólogo Claude Levy-strauss detestou a Baía de Guanabara:
Pareceu-lhe uma boca banguela.
E eu menos a conhecera mais a amara?
Sou cego de tanto vê-la, te tanto tê-la estrela
O que é uma coisa bela?

O amor é cego
Ray Charles é cego
Stevie Wonder é cego
E o albino Hermeto não enxerga mesmo muito bem

Uma baleia, uma telenovela, um alaúde, um trem?
Uma arara?
Mas era ao mesmo tempo bela e banguela a Guanabara
Em que se passara passa passará o raro pesadelo
Que aqui começo a construir sempre buscando o belo e o amaro
Eu não sonhei que a praia de Botafogo era uma esteira rolante deareia brancae de óleo diesel
Sob meus tênis
E o Pão de Açucar menos óbvio possível
À minha frente
Um Pão de Açucar com umas arestas insuspeitadas
À áspera luz laranja contra a quase não luz quase não púrpura
Do branco das areias e das espumas
Que era tudo quanto havia então de aurora

Estão às minhas costas um velho com cabelos nas narinas
E uma menina ainda adolescente e muito linda
Não olho pra trás mas sei de tudo
Cego às avessas, como nos sonhos, vejo o que desejo
Mas eu não desejo ver o terno negro do velho
Nem os dentes quase não púrpura da menina
(pense Seurat e pense impressionista
Essa coisa de luz nos brancos dentes e onda
Mas não pense surrealista que é outra onda)

E ouço as vozes
Os dois me dizem
Num duplo som
Como que sampleados num sinclavier:

"É chegada a hora da reeducação de alguém
Do Pai do Filho do espirito Santo amém
O certo é louco tomar eletrochoque
O certo é saber que o certo é certo
O macho adulto branco sempre no comando
E o resto ao resto, o sexo é o corte, o sexo
Reconhecer o valor necessário do ato hipócrita
Riscar os índios, nada esperar dos pretos"
E eu, menos estrangeiro no lugar que no momento
Sigo mais sozinho caminhando contra o vento
E entendo o centro do que estão dizendo
Aquele cara e aquela:

É um desmascaro
Singelo grito:
"O rei está nu"
Mas eu desperto porque tudo cala frente ao fato de que o rei é mais bonito nú

E eu vou e amo o azul, o púrpura e o amarelo
E entre o meu ir e o do sol, um aro, um elo.
("Some may like a soft brazilian singer
but i've given up all attempts at perfection").




"O pintor Paul Gauguin amou a luz na Baía de Guanabara. O compositor Cole Porter adorou as luzes na noite dela. A Baía de Guanabara. O antropólogo Claude Levy-Strauss detestou a Baía de Guanabara: Pareceu-lhe uma boca banguela”. Caetano começa enumerando as personalidades famosas e seus respectivos pareceres em relação à Baía de Guanabara, visando apenas engrandecê-la, colocando-a como centro das atenções. Veja como ele prolonga, nesta música, a sílaba ba de Guanabara. "E eu, menos a conhecera mais a amara?". Ele evita o menos a conheci mais a amei justamente para associar amara com Sto. Amaro, sua terra natal. Adiante isso ficará óbvio. "Sou cego de tanto vê-la, de tanto tê-la estrela. O que é uma coisa bela?". É comum, nas letras de Caetano, encontrarmos palavras entrelaçadas em antítese (cego/de tanto vê-la), e em homofonias bem elaboradas (tê-la estrela). Ele contesta aqueles que associam o belo à luz. "O amor é cego Ray Charles é cego Steve Wonder é cego. E o albino Hermeto não enxerga mesmo muito bem". A expressão "o amor é cego" é lugar comum. Empregada por Caetano, ela aparece como um toque de ironia e humor, ainda mais quando repete a palavra cego nas frases seguintes. Todo o trecho acima é impregnado de ludicidade. Veja como ele refere-se, de modo quase coloquial, aos óculos fundo-de-garrafa de Hermeto Pascoal. Por outro lado, a frase o amor é cego é uma justificativa da afirmação anterior: sou cego de tanto vê-la, que agora se poderia traduzir como "sou cego [de amor] de tanto vê-la". Parece-nos que Caetano pretende lembrar que a concepção de beleza não se restringe à luz, à imagem visual, contrapondo às primeiras personagens estas segundas (todos músicos, por sinal, e por isso, presumivelmente aptos a perceber o belo não pela luz, mas pelo som). "Uma baleia, uma telenovela, um alaúde, um trem? Uma arara? Mas era ao mesmo tempo bela e banguela a Guanabara”. Com a enumeração de coisas tão distintas entre si, Caetano vê que, de fato, a Guanabara acaba semelhante a uma boca banguela e aproveita a homofonia bela/banguela para afirmar que a beleza não está necessariamente na proporcionalidade das formas ou na simetria, conforme dita a concepção estética da escola clássica. "Em que se passara passa passará o raro pesadelo / Que aqui começo a construir sempre buscando o belo e o amaro”. A estrutura temporal da linguagem de Caetano Veloso não é tridimensinal. Não apenas nesse trecho, mas em muitos outros, os tempos dos verbos não seguem uma ordem lógica. Caetano vê o tempo como um eterno-presente, pura duração, tudo é aqui-agora. O raro pesadelo é uma presença (ente sendo). Um filósofo que ajudaria a pensar esse conceito é Heidegger (1889-1976), na sua obra Tempo e Ser. Reparemos que, mais uma vez, ele refere-se a Sto. Amaro. Essa insistência tem sua razão de ser e ela pode ser encontrada no próprio título desta faixa. Entre outras coisas, essa música é mais uma em que Caetano confessa sentir-se estrangeiro a respeito das coisas que não se ligam a sua terra natal. Lembremos que "Narciso acha feio o que não é espelho". Interpretássemos amaro como amargo ou repugnante, os elementos belo e amaro formariam uma antítese. Mas não é essa a ênfase. Não faria sentido declarar amor às suas raízes e associá-las a um adjetivo denegante. Segue-se uma descrição visionária que o autor constrói num contexto evidentemente místico: "Eu não sonhei: A praia de Botafogo era uma esteira rolante de areia branca e óleo diesel Sob meus tênis / E o Pão-de-Açúcar menos óbvio possível À minha frente Um Pão-de-Açúcar com umas arestas insuspeitadas A áspera luz laranja contra a quase não-luz quase não-púrpura Do branco das areias e das espumas Que era tudo quanto havia então de aurora. A expressão esteira rolante faz pensar que o personagem está pairando, coisa que algumas pessoas conseguem fazer em sonhos. Mas Caetano enfatiza que não se trata de um sonho. Os pragmáticos deduzirão sem esforço que a experiência aqui descrita é fruto da imaginação inventiva do autor. Há, entretanto, uma outra hipótese: Reparem que, antes de tudo, existe uma preocupação em situar-se topograficamente, tanto ao descrever um local já conhecido como em colocar-se no espaço ao usar os termos: sob, à minha frente, às minhas costas, etc. Curioso é que essa preocupação é muito comum em rituais de iniciação esotérica — alguns desses rituais ocorrem durante o estado hipnogógico (visões que ocorrem na fase inicial do sono, mas que, de fato, não se caracterizam como sonho) — Por essas razões, desconfio que a cena descrita não foi fruto exclusiva da imaginação inventiva do autor. Provavelmente Caetano andou lendo algo sobre o assunto ou está relatando uma experiência hipnogógica incomum, ou talvez "apenas" pintando, com palavras, uma tela impressionista tridimensional da Baía de Guanabara a partir do centro. De qualquer forma, a imagem é maravilhosa. Ele está pairando (como já foi dito) sobre o branco e o negro (que são a areia e o óleo diesel) aludindo, talvez, à posição de uma peça de xadrez. O Pão-de-Açúcar tem contornos nítidos, porém não parece ser o Pão-de-Açúcar no meio da aurora que o ofusca. É o sol nascendo que produz a áspera luz laranja que, refletindo no "branco das areias e das espumas", gera uma tonalidade bem opaca deste laranja, daí ser uma "quase não-luz quase não-púrpura" — o laranja é um vermelho imperfeito, é um quase-não-vermelho e, ao mesmo tempo, um quase-branco. A cena espacial é: O sol à esquerda, a cidade à direita, o Pão-de-Açúcar à sua frente, um laranja áspero no alto e opaco no chão, às suas costas... "...Estão às minhas costas um velho de cabelos nas narinas e uma menina ainda adolescente e muito linda. Não olho pra trás mas sei de tudo. Cego às avessas, como nos sonhos, vejo o que desejo. Mas eu não desejo ver o terno negro do velho Nem os dentes quase não-púrpura da menina (Pense Seurat e pense impressionista Essa coisa de luz nos brancos, dentes e onda Mas não pense surrealista que é outra onda). Um homem velho, de terno negro, com cabelos nas narinas, aparece como uma figura exatamente oposta à da menina adolescente, sorrindo e muito linda. É a dualidade. As duas faces da verdade que ele deseja ver apenas no que lhe pareça claro e óbvio. Ele não deseja ver o terno negro do velho (sisudez), nem os dentes quase não-púrpura da menina (sorriso). São contrários. Os dentes da menina são brancos. Tornaram-se alaranjados por reflexo luminoso do ambiente. Caetano frisa que se trata de uma cena impressionista (como falamos acima). É que, na escola impressionista, há duas características marcantes que estão também presentes nessa música: 1º) Uma manifestação impressionista não é um mero sonho, não é criação fantasiosa e sim percepção subjetiva de uma coisa que realmente existe, daí ele contrariar aqueles que vêem nessa construção devaneios do seu inconsciente (surrealismo): "mas não pense surrealista que é outra onda"; 2º) Todo branco da cena está alterado pela luz, como no caso dos dentes e das espumas das ondas. Alterar as cores da realidade é outra característica do impressionismo. Note que a palavra onda, nesse trecho, significa, respectivamente espumas e assunto. "E ouço as vozes os dois me dizem Num duplo som Como que sampleados num sinclavier: Talvez o efeito sonoro das vozes do velho e da menina, falando quase que ao mesmo tempo ,ou "como que sampleados num sinclavier", pareça-se com o efeito sonoro percebido por quem ouvir esse trecho: "É chegada a hora da reeducação de alguém Do Pai, do Filho, do Espírito Santo amém. O certo é louco tomar eletrochoque O certo é saber que o certo é certo O macho adulto branco sempre no comando E o resto ao resto, o sexo é o corte, o sexo Reconhecer o valor necessário do ato hipócrita Riscar os índios, nada esperar dos pretos" Esta é a mensagem que o velho e a menina, representantes da faca-de-dois-gumes, destinaram ao protagonista. Note que todo o trecho foi prefaciado em tom solene, religioso até, visando revesti-lo da forma de revelação. Muitas coisas podem ser ditas sobre o conteúdo dessas palavras que, apesar de serem factum veritas, a necessária hipocrisia que permite a convivência social (Thomas Hobbes?) rejeita pronunciá-las de modo tão incisivo. Pôs-se a nu, aqui, a segregação social provocada pela xenofobia em que a figura do "macho adulto branco" é idealizada como o padrão ou segmento superior aos demais. Poderíamos até acrescentar ao macho, adulto branco as outras características tais como escolarizado, rico etc. Após ouvi-las o protagonista vê-se atordoado, "estrangeiro no momento", e segue "caminhando contra o vento" — aludindo à antiga canção como forma de voltar a atenção para si e refletir o dito. "E eu, menos estrangeiro no lugar que no momento Sigo mais sozinho caminhando contra o vento E entendo o centro do que estão dizendo aquele cara e aquela:" Depois de captar o sentido da mensagem ele conclui: "É um desmascaro Singelo grito: ‘O Rei está nu’ Mas eu desperto porque tudo cala frente ao fato de que o rei é mais bonito nu" Aqui, ele não é mais tão "estrangeiro". Sente-se maravilhado por descobrir a verdadeira identidade do poder. Não é a nudez que é bela e sim o fato de o rei estar nu, desmascarado. Esta é a verdade que silencia todas as coisas. É um silêncio de espanto. E eu vou e amo o azul, o púrpura e o amarelo E entre o meu ir e o do sol, um aro, um elo. O azul é tudo, todas as coisas (veja a faixa Rai das Cores). O púrpura é o que poderia ser. Não se sabe se desejado ou temido. É o possível, o subjacente, uma espécie de virtualidade. É uma referência constante nesta letra. Poderíamos dizer que enquanto o azul é o ato, o púrpura seria a potência. O amarelo é a cor do sol. Consciência. A verdade revelada, aqui representada pelo rei nu. O sol é a luz que ilumina tudo que ficou oculto durante a noite. Simbolicamente é o despertar da consciência depois do pesadelo. Caetano tem agora um elo, um aro com o sol. (some may like a soft brazilian singer but I’ve given up all attemps at perfection) (alguns podem gostar de um agradável cantor brasileiro, mas estou dando tudo para alcançar a perfeição).

Postado por Mardem Lopes

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